Skip to content

Palavra, política e mito na trilogia de Fontaínhas de Pedro Costa

Um dos temas mais recorrentes da crítica da obra de Pedro Costa é a indiferenciação, nos seus filmes, entre o aspecto documental e a ficção. Quer privilegiem uma dessas vertentes, quer se interessem pelas passagens de uma à outra, as análises sempre convergem ao enfatizar a originalidade desse cinema ao lidar com a realidade da vida e a ordem da invenção. Também o convívio ou a coexistência de uma fala comum, ordinária, e de uma linguagem mítica costumam ser distinguidos como uma das maiores conquistas dessa obra que tem no seu foco uma população exilada da palavra pela sua condição periférica. Na minha apresentação proporei uma reavaliação dessa dualidade entre ficção e realidade no plano da fala, trazendo para o cerne da discussão o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa, na qual não mais verei como distintas, as dimensões ordinária e mítica.

O tratamento dado à palavra no cinema de Pedro Costa tem sido frequentemente posto em foco. “Juventude”, seu último longa, foi apontado pelo filósofo Jacques Rancière como uma obra em que a palavra mítica emergiria face à palavra quotidiana, elevando os personagens a uma estatura trágica. Outros críticos também destacaram o caráter extraordinário desse personagem que o filósofo elogiou, atribuindo-lhe ora a estatura de um “gigante”, ora a de um “rei”, de um “príncipe”, de um “Hamlet” ou ainda de um “Édipo”, do mesmo modo que Clotilde, sua mulher, seria uma “fúria antiga”, uma “Medéia” uma “Clitemnestra”; enquanto isso Vanda, Nhurro e outros personagens se apresentariam na sua dimensão de homens ordinários em suas vidas comuns.

Mas será que para arrancar os homens da sua atualidade, para fazê-los assumir uma estatura de gigantes, seria forçosamente necessário arrancá-los do ordinário de suas vidas, como sugerem alguns críticos a propósito dos filmes de Pedro Costa? Ou, em outras palavras: será que uma vitória do virtual sobre o atual só seria possível fora da banalidade do quotidiano?

Ao abordar a chamada trilogia de Fontaínhas acatarei a qualidade trágica atribuída por alguns críticos aos personagens de Pedro Costa; mas não a considerarei, por minha vez, como separada de sua existência dita “ordinária”. Pois não soa já inadequado chamar de “vida ordinária” essa que é vivida pelos personagens de No quarto de Vanda, em meio ao ruído e à poeira das máquinas de demolição que destroem suas casas, suas ruas, seu habitat?

E em que registro ouvir a frase desse homem que encontra, em meio aos miseráveis restos do seu barraco em vias de demolição, uma “colher de prata” com a qual o amigo “come seu iogurte”? E, como se não bastasse a aparente incongruência de encontrar um objeto precioso no meio da maior miséria, não é também uma colher de prata que outro homem miserável tentará vender à moradora de um dos últimos barracos ainda de pé?

Do mesmo modo, também não soa nem um pouco “ordinária”, em “Juventude em marcha”, a narrativa de Vanda sobre seu parto que, pela riqueza de entonações, pelas nuances da voz e pelo colorido dos afetos não fica a dever ao que Jacques Rancière chamou de “dicção lírica” de Ventura.

Tentarei me desfazer dessa dicotomia entre o quotidiano, ou ordinário, e o extraordinário defendendo a existência, nos filmes de Pedro Costa, de uma dimensão trágica que abarca ao mesmo tempo a vida quotidiana. Um feito que não deve ser atribuído apenas à intervenção peculiar do realizador, mas também à participação de seus “personagens” na realização desses filmes; o que coloca em pauta, de imediato, a especificidade do trabalho tanto de um quanto de outros na construção da obra.

Enunciação coletiva

Ao destacar a feição peculiar do trabalho na obra de Pedro Costa, Maurício Salles Vasconcelos já tinha chamado atenção para o seu caráter “comum”, para a sobreposição, nos filmes do diretor, “de um empreendimento coletivo, anônimo, sobreposto à realização autoral”[1].

[1] Vasconcelos M.S “Contracosta” in Devires – Cinema e Humanidades, vol. 5, 2008, pp 122-135.

Também ao salientar tal particularidade, Fausto Cruchinho destacara, por sua vez, o método de “partilha” habitualmente chamado de documentário de Pedro Costa, fundado na planificação de “um argumento que vai sendo escrito pelos personagens: as suas vivências, as suas memórias, os seus desejos, as suas necessidades e o seu estatuto na comunidade e no filme”. Ao trabalhar fora da lógica da produção cinematográfica portuguesa e internacional, o diretor teria invertido o processo industrial do cinema, filmando com equipes mínimas; além disso, ao se encarregar também da fotografia pelo processo digital, Pedro Costa tornou possível uma “seleção” do material, no caso numa proporção de um para quinze – “seleção” que, segundo Cruchinho, viria a assumir uma função de “escrita” do argumento: sendo o produto final da seleção uma parte diminuta do produto em bruto, argumenta o crítico, ela própria se transformaria no “trabalho da escrita do argumento”, trabalho que Pedro Costa só tornaria efetivo no fim do filme montado, mas que os próprios personagens viriam a assumir, por sua vez, no decorrer da filmagem[2].

[2] Cruchinho, F. “Pedro Costa: Relações de Sangue” in Portuguese Cultural Studies 3, Spring, 2010.

O que transparece dessas análises é que a ruptura do cinema de Pedro Costa com o processo industrial do cinema ultrapassa a opção pelo trabalho com equipe reduzida, para atingir a própria divisão do trabalho; é assim que não apenas a autoria do argumento é distribuída no seio do grupo, mas também sua concepção não ocorre na ordem habitual, isto é, antes da filmagem, passando a se concretizar durante e depois dela.

Argumentarei que a vitória do virtual sobre o atual, ou a afirmação do extraordinário na vida ordinária dos personagens de Pedro Costa está relacionada com essa quebra do modelo internacional da produção cinematográfica, quebra que se dá em consonância com a elaboração coletiva e anônima da obra. Responsável pela dimensão mítica desses filmes, o trabalho coletivo e anônimo será entendido, aqui, como a conquista do agenciamento coletivo de enunciação que Gilles Deleuze chamou de fabulação – uma conquista à qual acedem, ao mesmo tempo, o diretor e os personagens engajados na realização dos filmes.

O termo fabulação tem sido frequentemente – e um tanto abusivamente – evocado a propósito de muitas obras do cinema contemporâneo em que é propiciada a gente comum a oportunidade de falar de suas vidas, de seus sonhos e de desejos. Gostaria de retomar a noção, deslocando o foco mais habitual no seu caráter de produção “imaginária” para reatar com sua dimensão, menos ressaltada, de agenciamento coletivo de enunciação com valor imediato de um agenciamento político, como ato de resistência.

Sabemos que a palavra enunciada nos filmes de Fontaínhas não tem sua origem apenas em Vanda, em Ventura, ou nos outros personagens, e nem deriva do próprio diretor. Na verdade, muitas vozes nela convergem, vozes presentes, mas também ausentes, vozes que falam no filme mas que não falam só pelos que estão no filme. Diremos que a palavra, nesses filmes, “agencia” diferentes forças capazes de expressão, forças que atravessam a realidade social e histórica e a realidade do filme, mas que também podem vir de outro tempo, do passado próximo ou muito remoto e fora da história, e até mesmo do futuro. É como agenciamento coletivo com o poder de atualizar essas forças que a palavra se enuncia nesses filmes, e é como tal que ela esvazia a separação entre fala quotidiana e fala mítica, desfazendo também a oposição documento-ficção e tornando nula a dicotomia autor-objeto filmado.

A fabulação se constitui como um ato político, já dizia Deleuze, como ato de resistência, e no cinema de Pedro Costa diz respeito tanto ao diretor quanto à comunidade filmada. Se toda fabulação é fabricação de gigantes, como escreveu o filósofo, os personagens de Pedro Costa podem alcançar “uma dimensão sem medida comum com sua estatura” porque diretor e comunidade conquistaram, juntos, um agenciamento coletivo de enunciação por meio do qual uma palavra de outra ordem, nem documento nem ficção, emerge. Fabulação.

Muitos críticos se referem a um “método de trabalho” de Pedro Costa, método que teria sido definido a partir do seu encontro com a comunidade caboverdiana. Poderíamos substituir essa noção de “método” pela de conquista da enunciação coletiva, uma conquista que se esboçaria a partir de Casa de Lava, para se completar com a realização de “Juventude”.

A carta

Tomemos o exemplo da carta que Ventura faz Lento repetir ao longo de Juventude em marcha como emblemática do que seria uma enunciação coletiva. Se a enunciação coletiva agencia diferentes falas e vozes (e fala até pelos que não têm voz: os animais, as plantas, as pedras), que podem estar em diferentes lugares e tempos, lembremos que a carta já surge bem antes de Juventude em marcha, em Casa de Lava mais precisamente, ainda um filme “de ficção”, mas, muito sugestivamente, aquele que levou Pedro Costa a Cabo Verde e ao contato com a população que viria a tomar seu cinema. Casa de Lava ainda foi feito segundo o modelo consagrado pelo cinema industrial; mas foi também aquele que levou Pedro Costa à decisão de abandonar esse modelo.

Como que pontuando o filme, a carta aparece três vezes, sem que seu autor ou destinatário sejam, entretanto, nomeados. Uma carta é uma mediação mas, aqui, faltam os dois polos que justificariam tal função. “Atravessando” o tecido narrativo de Casa de Lava como um fio de palavras, esta carta sem atribuição permanecerá como uma palavra “inviável”, que antes desenha o arco da separação instaurada pelo colonialismo e seu pós do que liga pessoas entre si.

Antes de considerar o texto, destaquemos as superposições de dimensão que ela apresenta em função de sua mera “circulação” no filme. Sua primeira aparição é apenas na imagem, não saberemos nada de seu conteúdo: ela é encontrada por Mariana, a personagem chegada do mundo branco, ao remexer papéis velhos na casa de Edite, outra personagem branca instalada há muito tempo em Cabo Verde. Enfermeira, Mariana acompanha até a sua terra um operário cabo-verdiano em estado de coma. Já Edite, também portuguesa, vive na Ilha de Santiago para onde teria acompanhando o marido, prisioneiro político da época salazarista. Sugestão de um segredo na vida de Edite, a carta se refere às duas personagens ligadas pela origem branca, mas separadas pela condição de mulher de um exilado, de Edite, pela sua instalação definitiva em Cabo Verde, enquanto Mariana está de passagem no lugar.

No segundo contato de Mariana com a carta, ouviremos seu conteúdo; por não entender crioulo, ela pede a Tina que a leia, revelando-a agora como texto, embora ainda como palavra que separa, reservada ao entendimento de uns (os que entendem crioulo) e proibida ao de outros (que só falam português: Mariana sempre exige que os habitantes locais lhe falem em português quando estão usando sua língua nativa).

Uma vez traduzida, agora sabemos que se trata de uma carta de amor, aparentemente de um imigrante para sua mulher (seria Edite?)que teria ficado na colônia. A leitura, entretanto, não se completa, as palavras não chegam ao seu fim nesse plano – como se o importante fosse, ainda, a trajetória da carta de um lugar e de um personagem a outro. Mais tarde a carta surgirá de novo: agora é Edite que procura por ela, roubada ou reenviada, enquanto a sua leitura prossegue em voz off. Em outro momento ainda, a enfermeira perguntará a Leão se foi ele quem escreveu a carta, mas ele não sabe ler; agora não é a língua que indica separação ao impedir o acesso à carta, mas a condição de analfabetismo dos imigrantes que é ressaltada como um outro tipo de separação. A carta aparece, finalmente, na cena do vulcão: rasgada em pedaços no chão de lava, ela parece romper de vez a truncada circulação dessa palavra inviável num filme que ainda confronta dois mundos.

Com certeza há uma dimensão afetiva nessa carta, ela põe em jogo algo da ordem de uma ligação amorosa; mas, ao mesmo tempo, trata-se de um amor que atravessa dois mundos separados pelo próprio processo político, que os constitui em metrópole e colônia. Nela se aliam, além desse passado colonial de Portugal, a ditadura salazarista (o marido de Edite, a quem a carta é primeiro associada, teria sido um prisioneiro político em Cabo Verde); o passado colonial de Cabo Verde, e o seu presente: a população imigrante que, sem condições de vida em seu país, busca a subsistência na antiga metrópole.

Em Juventude em marcha uma carta idêntica surge e pontua o filme, agora repetida mais de uma vez e na sua íntegra por Ventura, que quer ensiná-la a seu amigo Lento. Motivo recorrente no filme, desta vez ela não é escrita – como em Casa de Lava – mas falada, já que nenhum dos dois personagens sabe ler, e parece se endereçar agora a Clotilde, a mulher que abandonou Ventura e o expulsou de casa. Ela nunca será escrita, nunca será enviada, mas terá o mesmo valor de diálogo, do qual todo o filme é constituído.

Passemos agora ao modo como foi construído o texto da carta, que esclarece, de modo exemplar, o que seria um agenciamento de enunciação coletiva. Ele não foi concebido por um único missivista, um único autor, mas a partir de trechos de cartas de imigrantes às suas famílias, montados por Pedro Costa. Além de não provir de uma só origem, de reunir as vozes anônimas dos imigrantes, na sua elaboração o diretor não procedeu do modo mais corriqueiro, fundindo as várias cartas num só texto; ele lhes incorporou trechos de uma outra carta, aparentemente alheia à situação e ao momento do filme: a do poeta francês Robert Desnos a sua mulher, quando estava preso por sua militância antifascista num campo de concentração na Tchecoslováquia. Foi o diretor Pedro Costa quem fez o trabalho “de costura” entre essas textualidades, dando liga, agora com suas próprias palavras, às diferentes partes da carta.

Na verdade, isto que chamamos de “construção” nada mais é do que o agenciamento coletivo de enunciação de que fala Deleuze, ao propor sua noção de fabulação. A fabulação é um agenciamento com força política, diz ele, um ato de resistência, ela deve ser arrancada de um estado de coisas como se extrai uma qualidade intensiva ou uma potência de acontecimento. É um gesto que ao mesmo tempo arrebata consigo os significados das palavras vindas de diferentes origens, atualiza seus contextos originais, e potencializa seus poderes. Isto significa que esse enunciado é, em si mesmo, gesto político, de resistência, arrancado de um estado de coisas: no caso do filme, da vida quotidiana dos imigrantes.

A carta de amor foi construída a partir de uma série de elementos – ou seja, foi “agenciada” por meio de um certo número de enunciados reunidos no contexto do mundo que gerou a imigração ou que com ele apresenta afinidade. Como carta de amor ela fala de afetos, da saudade, do amor que se esvai com a distância. Mas ela fala também da realidade cotidiana dos imigrantes, do trabalho, e manifesta a capacidade deles de resistir num contexto adverso (“o trabalho só aumenta”), de se adaptar e de aprender com ele (“todo dia aprendo umas palavras novas para nós”). Mas ela incorpora também as palavras que provêm de outro universo, do poeta no campo de concentração. E ao assimilar os dois contextos: os grandes deslocamentos, o nomadismo instaurado pela mundialização do capital e a situação de confronto mundial de forças da Segunda Guerra, ela faz ecoar, na realidade dos imigrantes, a situação de prisioneiro político do poeta Desnos; assim como faz ecoar no contexto da imigração, a realidade da prisão política. Ao reunir, numa só enunciação, a fala dos imigrantes, a do prisioneiro político, e as palavras de Costa, a carta é fabulação com força política: ela qualifica politicamente o fenômeno da imigração ao mostrar que os imigrantes são, também, prisioneiros, os prisioneiros políticos de nossos dias. Como grande massa de deslocados que o processo de desenvolvimento do capitalismo não para de secretar, os imigrantes são, assim, tomados como uma nova espécie de presos políticos – não mais presos no espaço carcerário, mas na própria impossibilidade do lugar na qual foram atirados pelo processo de globalização.

Esta carta, portanto, não é obra só dos imigrantes. Nem de Pedro Costa. Nem tampouco de Robert Desnos. Ela é de todos eles – ou melhor, ela “agencia” as forças históricas que por eles passam, ou que eles fazem convergir. Por isto ela pode ser considerada como fruto da conquista de um agenciamento coletivo de enunciação, uma conquista já anunciada em Casa de lava, e que passa a afirmar de maneira cada vez mais incisiva para se consolidar com Juventude em marcha.

O épico

Deleuze desenvolve sua noção de fabulação com base em algumas obras cinematográficas, dentre elas a do canadense Pierre Perrault. Em Pour la suite du monde (Pela continuação do mundo, ou Para que o mundo prossiga), a baleia que os habitantes da Ilha de Coudres buscam pescar é um “gigante”, um ser fabuloso que a função fabuladora dos pobres fabrica, fazendo dela uma lenda, uma memória, um monstro. Ninguém mais se lembra dessa pesca que remontaria ao tempo imemorial, ao tempo mítico em que os “selvagens” habitavam a ilha. Mas para os habitantes da ilha a baleia, assim como outros animais legendários para outros povos, não é simplesmente um animal para ser morto, mas imagerie, a fresco épico. Como eles, como a Moby Dick de Melville, trata-se de animais para serem recitados e para se tornarem lenda. E é nessa criatura que as palavras dos homens transformam em lenda que os habitantes da ilha depositam suas crenças e esperanças: a baleia falará à América daqueles que não têm palavra. Pouco importa que ela só exista hoje num aquário em Nova Iorque, ela é um mostro capaz de viver uma vida que lhe é própria, uma Entidade auto-referencial, um monumento de resistência por meio do qual a comunidade de língua francesa resiste ao inglês, à assimilação cultural pelo contexto americano.

Estas palavras que se referem à baleia do filme de Perrault constam da bela leitura da noção de fabulação de Deleuze por Vanessa Brito, na qual ela mostrou que a fabricação de Entidades à qual a fabulação dá lugar dificilmente se separa de sua origem mitológica. A fabulação não se reduz à faculdade de imaginação que consolidava as sociedades por meio da fabricação de deuses, afirma ela; ela se torna uma enunciação coletiva com valor imediato de um agenciamento político, um ato de resistência. Mas esse ato de fala que se quer político não deixa, para tanto, de ser um ato que cria o mito. Assim, nota ela, quando os caçadores em La Bête Lumineuse (outro dos filmes de Perrault) esperam pelo Original, é a chegada de um ser luminoso e fabuloso que esperam, de um “deus” que se manifestará em momentos de amor e de graça na floresta, momentos dos quais eles saem engrandecidos. Por meio do original, os homens se descobrem e se reinventam.

Retomando o fio do trágico, Vanessa Brito observa que essa ida à floresta é menos parecida com uma assembleia política da qual emergiria um coletivo antes inexistente, do que com uma epopeia, “na qual o ato de por em lenda se mistura ao real e as palavras pronunciadas bastam para mudar a história ou a vida dos indivíduos”. Para Brito, não é estranha a Deleuze a ideia de uma restauração do épico no mundo contemporâneo, daquele entrelaçamento da inocência e do crime capaz de desfazer as categorias implicadas na nossa representação do voluntário ou na nossa teoria da escolha – noções de ação responsável, de decisão, de julgamento, de dever, de dívida, de culpabilidade. Também as palavras pronunciadas pelos caçadores do Original, a fabulação, os levam para além de si mesmos, numa loucura duplicada pela inocência.

Voltando ao cinema de Pedro Costa, e ainda no território da ficção, é em Casa de Lava que se esboça o primeiro movimento de conquista de uma enunciação coletiva, movimento pela palavra, pela palavra escrita – pela carta. Restrito no entanto a essa carta sem atribuição, que circula como objeto de um personagem ao outro ao longo da narrativa, esse movimento virá a ser ampliado em Ossos, quando o filme passa a incorporar os corpos e as vozes dos imigrantes à sua já tênue ficção.

Ossos, o primeiro filme de Pedro Costa em Fontaínhas tem poucas falas, que ainda se inscrevem num tênue fio narrativo. Mas além de seus personagens participarem daquela dimensão épica, enaltecida pelo filósofo, ao agirem fora das noções de responsabilidade, de culpabilidade (o abandono do bebê, a tentativa frustrada de matá-lo são atos cumpridos “dentro de uma indiferenciação entre o bem e o mal”, como escreveu Cruchinho[3], “numa total abolição do juízo moral quer por parte dos personagens, quer por parte do realizador”), já são poucos os atores em cena, enquanto os corpos e as vozes dos habitantes de Fontaínhas dela começam a tomar conta.

É verdade que essa indiferenciação entre o bem e o mal tinha sido apontada nos personagens de Casa de Lava pelo mesmo crítico, que ali já divisava a vitória do mito sobre o conhecimento e o predomínio do inexplicável: o coma de Leão, a morte do cão, a desarticulação da ação pelas elipses temporais e espaciais da narrativa. Mas se esse filme já integrava o negro, a língua crioula, os corpos e vozes com sua sensualidade, os ritmos musicais e de dança como parte da expressão individual e coletiva da comunidade, ainda havia um conflito condutor da narrativa, conflito entre esse mundo e o mundo branco central ao filme; os mundos convocados pela carta ficavam, assim, submetidos aos itinerários dos personagens, cuja ação ela mais pontuava que orientava.

[3] Cruchinho, F. “Pedro Costa: relações de sangue”, op.cit.

Vanda

Em O Quarto de Vanda, já no solo do que Catherine David chamou de “situação real”[4], Costa incorporará ao filme as próprias falas dos imigrantes. As vozes que passaram pela mediação da carta em Casa de Lava começam, nesse filme, a se manifestar diretamente. Nesse filme em que o silêncio ainda predomina, as vozes e as palavras da população cabo-verdiana passam a ser colhidas no seu habitat e testemunham o modo como vivem e convivem os imigrantes, seu cotidiano ameaçado pela demolição do bairro de Fontaínhas, o consumo da droga. A própria construção do filme, composto por longos planos sequência como blocos que se sucedem em mera justaposição, sem nenhuma progressão rumo a um desfecho ou a uma explicação – a chamada montagem paratáxica – já confere destaque aos diálogos, sugerindo desde já a importância que a palavra dos moradores de Fontaínhas passará a ter no cinema de Pedro Costa.

[4] A expressão deu título a uma exposição criada pela autora e exibida no MAC, São Paulo, em 2003.

Considerado em relação à trilogia de Fontaínhas, em O quarto de Vanda, entretanto, essas vozes ainda falarão “por si”, ou “em seu próprio nome”: as irmãs Vanda e Zita dialogam sobre suas vidas, sobre a droga, sobre a irmã presa por furto, sobre suas memórias da infância no bairro;

ou Vanda dialoga com seus amigos sobre suas vidas;

também Nhurro e seus amigos falam da busca de um novo lugar para morar, depois que foram despejados, sobre a droga que também partilham.

Mas, apesar de ser colhida diretamente, esta fala não é aquela, espontânea, que o cinema costuma privilegiar quando lida com situações reais. Começa a se delinear, a partir desse filme, um modo de trabalhar junto com a comunidade que, se não chega ainda a ter no seu centro a palavra (como acontecerá com as “cenas” baseadas em diálogos reais de Juventude…), atesta que esta não apenas será decisiva na construção da filmografia de Fontaínhas, mas será objeto de intenso trabalho conjunto de preparação, de ensaios, de escolhas – enfim, de uma “construção” que foge aos padrões consagrados pelo cinema que lida com situações reais.

Os diálogos aparentemente “livres” de Vanda com a irmã, ou de Nhurro com os amigos deixam a impressão de uma grande “concentração”, o que só pode ser alcançado por meio de repetidos ensaios e gravações que “aparam” e “limpam” as falas do que pode ser descartado (Pedro Costa grava uma média de 15 planos para 1). Além disto, percebe-se um minucioso trabalho de seleção dessas falas, privilegiando o recorte temático (lembranças de infância, as relações familiares, a droga…).

Retomando agora a crítica que distingue no cinema de Pedro Costa uma fala ordinária e uma fala mítica, notemos como nesse filme já parece problemático classificar como “ordinária” esta vida que insiste heroicamente em continuar no fragor das demolições, da brutalidade das máquinas e do espesso pó que embaça a atmosfera. Do mesmo modo, as longas cenas de consumo de droga, mostradas de modo a não suscitar nenhum julgamento moral por parte do filme, convocam o caráter trágico de um mundo que não distingue entre o bem e o mal, enquanto a palavra dita pelos personagens nem sempre pode se ouvir no registro de uma fala “quotidiana”. Assim, como tomar como trivial, ou “ordinária”, a frase “vou morrer” lançada por uma voz off masculina não identificada, sobre a impressionante imagem de um rosto negro deitado, que acabou de emergir em grande close da escuridão na qual dançava um ponto de luz?

A resposta ainda permanece nas vizinhanças desse registro mágico (“Não vai morrer não, somos malditos, os malditos não morrem; só os inocentes morrem”), e o fecho rápido do diálogo, após algum silêncio, traz de volta a conversa para o plano mais trivial (“Amanhã preciso cortar seus cabelos”).

Juventude

Em Juventude… a palavra passa a ocupar lugar central: a própria construção do filme, em cenas constituídas por diálogos, comprova tal eleição. Lembremos que o filme entroniza um personagem, Ventura, que será visto tanto no passado, em conversas com o amigo Lento, quanto no presente, perambulado pelas casas dos “filhos”, com os quais dialoga. Ora, curiosamente, seus dados biográficos, ora palpáveis (foi pedreiro, abandonado pela mulher Clotilde, trabalhou na construção do Museu Gulbenkian, chegou de avião em Portugal com um amigo na época dos Cravos, recusa os apartamentos que o serviço social do estado lhe propõe), ora ambíguos (não sabe ainda quantos filhos tem, chama de filhas Vanda e Bete, que dizem não sê-lo…) sugerem um personagem “montado”, montado com base em narrativas de imigrantes (e dentre elas a de Ventura mesmo), personagem face ao qual, consequentemente, seus interlocutores (Vanda, Nhurro, Paulo, que já vimos na sua vida dita “real”), passam a ter esse seu estatuto como que “suspenso”.

Essa condição comum aos personagens sugere que, se em Juventude as palavras não são mais necessariamente de quem as diz, se elas não têm necessariamente sua origem naquele que as pronuncia, mesmo quando são de quem as diz, esse pertencimento deixa de contar. Parece que, estendendo aquele procedimento usado na construção da carta, as falas de cada personagem foram elaboradas a partir das falas de muitos, de uma multiplicidade de falas “reais”: somadas, essas falas constituem um tecido comum de memórias, de experiências e de histórias de vida que, sendo de todos, podem ser partilhadas entre todos os participantes do filme, independentemente de seu estatuto mais ou menos “real”. É assim que Vanda, tomada em sua vida “real” de ex-toxicômana, chama Ventura de “pai” enquanto nega ser filha da mulher que o abandonou e que ele lhe atribui como mãe; enquanto Bete, que negara ser sua filha, o acolhe em casa e partilha suas memórias familiares.

A crítica tem distinguido o personagem de Ventura dos outros participantes do filme, como se as palavras daquele inaugurassem uma outra ordem de escuta. Mas será possível ouvir como “ordinária” a reação de Vanda diante da televisão, quando descreve o ataque da anaconda que a tela mostra como uma luta real de monstros assustadores.

Apesar de estar no quarto de paredes brancas da habitação social, muito diferente daquele de Fontaínhas em que Bete e Ventura veem figuras lendárias nas paredes manchadas, a narrativa de Vanda revela o extraordinário tanto quanto a fala de Clotilde sobre sua aventura no mar de tubarões quando criança.

Se Ventura é pai de todos os filhos, se Lento morre no incêndio e aparece vivo em seguida é porque ambos “portam” falas múltiplas, ditas por outras bocas, por outras vozes, em outros momentos e até em outros filmes (Ventura caiu de uma obra, assim como o trabalhador de Casa de Lava). Se a personagem de Ventura assume porte mítico é porque sua fala exemplar assume esses enunciados “comuns”, de todos, fazendo-se portador da palavra como ato de resistência. Agora, a carta de Ventura não passa mais de mão em mão, como em Casa de Lava; ela pode ser “dita”, do mesmo modo que os diálogos são ditos. A fabulação ganhou todos os personagens; ou então foram eles que a ela acederam.

Palestra na Mostra O Cinema de Pedro Costa
Curador: Daniel Ribeiro Duarte
Título da Mesa: Palavra e Política na trilogia das Fontaínhas, 04/09/2010.
Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo.

Back To Top